Acabei de ler o relatório do GPIAAF sobre a abertura da investigação ao “acidente” do Elevador da Glória.
Não sou especialista em funiculares, mas passei anos a projetar, executar e testar sistemas complexos — e há falhas que saltam à vista mesmo sem pertencer ao domínio ferroviário.
1. Um plano de manutenção inadequado
Parte do cabo que falhou não era acessível nem inspecionável nas rotinas diárias.
Não havia instrumentos de medição — como extensómetros — que pudessem detetar deformações indicativas de falha iminente.
O plano limitava-se a inspeções visuais superficiais, insuficientes para um sistema com mais de um século de operação contínua.
2. Um sistema sem redundância
A segurança do elevador assentava na robustez de um único elemento crítico: o cabo que equilibra as massas em vazio das duas carruagens.
Quando esse cabo cedeu, todo o sistema perdeu o seu equilíbrio.
Os travões pneumático e manual — corretamente acionados pelo guarda-freios — não foram suficientes para travar as carruagens.
Sem o cabo, não havia redundância mecânica que garantisse travagem segura.
3. O que dizem as normas
O caso pode e deve ser analisado à luz dos regulamentos aplicáveis:
- EN 12929-1 — segurança geral e redundância de sistemas.
- EN 12927 — cabos: fixação, inspeção, substituição.
- EN 1709 — inspeções de rotina e ensaios funcionais.
- Regulamento PT 227/2012 — planos de manutenção e registos obrigatórios.
Estas normas não são recomendações: são obrigações técnicas para qualquer instalação deste tipo em operação pública.
As principais fragilidades encontradas:
- Fixação do cabo não inspecionável.
- Travões incapazes de imobilizar o sistema sem o contrapeso.
- Substituição do cabo baseada em tempo de serviço, não na condição real do material.
As normas são claras:
- Se não é possível avaliar a condição de um cabo, deve ser retirado de serviço.
- Deve existir travão independente capaz de parar o veículo mesmo em caso de falha do cabo.
- Inspeções visuais não bastam — exigem-se ensaios especializados para aferir desgaste e deformação.
4. Falhas críticas de conformidade
O acidente revelou duas violações graves das normas vigentes:
- Fixação do cabo não inspecionável.
- Travagem insuficiente sem apoio do cabo.
O sistema eletromecânico do Elevador da Glória, tal como operava à data do acidente, não cumpria as normas europeias aplicáveis.
Se eu fosse o engenheiro responsável pela conformidade desta instalação, andaria muito, muito nervoso por estes dias.
5. Responsabilidade e política
Se o cenário técnico se confirmar, o guarda-freios e os técnicos de manutenção não são os culpados.
Seguiram planos e instruções aprovadas superiormente.
A responsabilidade recai sobre quem determinou a não atualização do sistema, quem reduziu tempos de manutenção, quem ignorou o aumento de utilização turística.
Deixar operar uma infraestrutura com mais de 100 anos sem atualizações de segurança relevantes —
ao mesmo tempo que se promove o seu uso intensivo —
é negligência grosseira, senão criminosa.