Não é transformação. É arrendamento!

Publicado por João em 19-10-25 22:11

O baseload não é nostalgia — é o que mantém as luzes acesas

Quando, a propósito de discussões sobre a rede elétrica, eletricidade e energia, leio que o baseload é uma “nostalgia” e que o futuro está em mercados de flexibilidade, reconheço o argumento de um economista mas os erros de um mau engenheiro.

Há um erro recorrente nessas discussões: confundir a gestão económica da eletricidade com a física que a torna possível. João Galamba escreveu num artigo no Eco, com a clareza de quem domina mercados, que “gerir é cada vez mais um exercício de orquestração, coordenação e criação de espaços (mercados) de diferentes tipos”.

É uma formulação elegante mas perigosamente incompleta. Porque antes de haver mercados há máquinas girantes, linhas de transmissão, controlos de frequência e margens de segurança. Antes da coordenação financeira vem a coordenação eletromecânica. E essa não é uma questão ideológica: é física pura e dura.

O que o baseload é e o que não é

Nos debates públicos, baseload virou sinónimo de carvão, passado e poluição. Mas no jargão técnico, baseload significa outra coisa: o piso de energia firme que mantém o sistema estável quando tudo o resto falha. É a energia contínua, previsível, capaz de responder instantaneamente a variações de carga e de garantir que a frequência se mantém teimosamente em torno dos 50 hertz.

Durante um século, essa função foi desempenhada por centrais síncronas térmicas, hídricas, nucleares cujos geradores pesados armazenavam energia cinética. Essa inércia física amortece perturbações; quando um gerador cai, a rotação dos restantes abranda ligeiramente e estabiliza a frequência até o controlo automático reagir.

Retirar estas massas girantes é arrancar uma camada invisível de segurança ao sistema. O que antes era um subproduto gratuito da geração síncrona passa a ter de ser reconstituído: com compensadores síncronos, volantes de inércia, baterias grid-forming, reservas rápidas e interligações.

Tudo válido, mas tudo substitutos. A física não desaparece porque o modelo de negócio mudou. E é por isso que chamar ao baseload uma “nostalgia” é um erro de diagnóstico.

Mercados não desenham infraestrutura crítica

Galamba confia que “mercados bem desenhados” coordenarão a nova realidade elétrica. Mas mercados respondem a sinais de preço no curto prazo; não planeiam resiliência estrutural nem garantem soberania energética de longo prazo. O apagão do Texas de 2021 mostrouo brutalmente: o frio paralisou a geração eólica e parte do gás, os preços subiram para 9 000 $/MWh, mas a rede colapsou antes que alguém pudesse reagir. Não houve tempo para “coordenação de mercado” apenas falha em cascata- Texas Tribune (2021).

A questão não é ser contra soluções de mercado ou participação privada. É reconhecer que infraestrutura crítica não pode ser totalmente mercantilizada. O Estado não pode abdicar de planear, regular e, quando necessário, operar os ativos que garantem a estabilidade física do sistema. Porque a rede elétrica não é um bem transacionável como outro qualquer é a base material sobre a qual assenta toda a atividade económica. Quando o planeamento é delegado ao mercado, quem paga o custo da instabilidade não são os operadores privados: é o tecido produtivo inteiro, são os hospitais sem eletricidade, são as famílias no escuro.

Os mercados de flexibilidade e capacidade têm um papel. Mas não substituem a necessidade de o Estado definir quanto de reserva firme é necessário, onde deve estar localizada, e como se articula com a estratégia industrial do país. Decisão política, não um equilíbrio de leilão.

Coordenação não é estabilidade

Um sistema elétrico precisa de duas coisas para se manter estável: suficiência (potência ao longo do tempo) e segurança operacional (estabilidade em cada instante). Mercados podem ajudar na suficiência determinam quem gera mais barato, quem vende, quem compra. Mas a segurança operacional é outra conversa: depende de leis de Newton, não de leilões.

A Península Ibérica viveu um apagão semelhante ao do Texas em Abril de 2025: um colapso de frequência que deixou milhões sem luz durante horas. O relatório preliminar da ENTSO-E (2025) apontou a falta de geração síncrona como um dos fatores que agravaram a instabilidade. Quando o sistema entra em colapso, o preço é irrelevante. Não se negocia a frequência repõe-se. Ponto final.

A flexibilidade de que Galamba fala depende de milhares de ativos coordenados em tempo real. Mas quando a Península entrou em colapso em Abril de 2025, não houve tempo para mobilizar essa flexibilidade distribuída a frequência caiu mais rápido do que os sistemas conseguiram reagir.

Controlabilidade não é estabilidade

Galamba escreve que, graças à eletrónica de potência e às baterias, o sistema é “mais controlável”. É verdade: conseguimos medir e atuar mais depressa do que nunca. Mas o problema não é a velocidade do software; é o tempo da física.

Um gerador síncrono reage em milissegundos, por pura inércia. Um inversor precisa primeiro de detetar, calcular e atuar. Essa diferença, que parece irrelevante em teoria, é o que separa um distúrbio amortecido de uma falha em cascata. Controlabilidade não é estabilidade. Pode-se simular inércia, mas não se cria energia cinética com software. Pode-se construir modelos preditivos, mas eles não substituem o momento angular das turbinas.

Escala: o que significa substituir o baseload

Vamos a um cenário prático, um que acontece todos os invernos: o vento cai 3 GW abaixo da média durante 36 horas. Precisamos de 3 GW × 36 h = 108 GWh de energia firme para cobrir o défice.

  • Uma central de bombagem de 1,5 GW teria de operar quase três dias seguidos.
  • As baterias, com blocos de 250 MW·1 h, precisariam de 432 móduloshora, equivalentes a 108 GWh algo que ainda não existe na Península.
  • Um gasoduto pode fornecer isso com algumas dezenas de milhões de metros cúbicos de gás energia despachável, não ideal, mas real.
  • Uma interligação de 1 GW reduziria o défice local em um terço, desde que o vizinho tenha sobra.

Estes números não são argumentos contra a transição; são lembretes de escala. A física da rede é feita de gigawatts e gigawatts-hora, não de slogans.

O mix que Portugal precisa

Portugal e Espanha têm boas cartas. A hidráulica de bombagem Frades II, Alqueva, Aguieira é o baseload flexível que o vento e o sol não conseguem ser. As interligações com França e Marrocos são o segundo pilar. E o gás, quando usado de forma inteligente, é o amortecedor que impede o sistema de oscilar.

Mas tudo isto exige planeamento integrado: saber quantos GWh de reserva existem, onde estão, e quanto tempo conseguem sustentar o sistema. É isso que o planeamento probabilístico, de que Galamba fala, deveria realmente significar não uma abstração estatística, mas a contabilidade física do risco.

Nuclear sim

E aqui falta uma peça: Portugal precisa de retomar o programa nuclear se não quer agravar a sua dependência do exterior. A energia nuclear, particularmente os Small Modular Reactors (SMRs) que estão a entrar em fase comercial, oferece exatamente o que o sistema precisa: baseload firme, carbono zero, operação contínua sem dependência de condições meteorológicas. Um SMR de 300 MW operando a 90% de disponibilidade entrega 2.365 GWh/ano de energia firme o equivalente a todas as baterias que não temos, sem precisar de 36 horas de reserva, sem precisar de backup.

Não é nostalgia do nuclear de grande escala dos anos 70, com os seus riscos e custos de construção bem documentados. É reconhecer que a física da rede exige fontes despacháveis, e que entre carvão, gás e nuclear, só um garante descarbonização real. E vale apontar que Portugal tem (ou tinha) reservas de urânio que poderiam suportar uma transição descarbonizada durante umas décadas. A França mantém a frequência estável e exporta eletricidade precisamente porque nunca abdicou do nuclear. Portugal podia fazer o mesmo, a uma escala adequada, em 10-15 anos.

O que se faz “lá fora”

A ENTSO-E continua a exigir margens de inércia e reservas mínimas; o Reino Unido contrata “serviços de estabilidade” através do programa Stability Pathfinders para substituir o must-run térmico. A Austrália desenvolve normas de grid-forming inverters precisamente porque descobriu que não pode prescindir da estabilidade física. National Grid ESO – First Phase Stability Pathfinders Delivered (UK, 2023) ESS News – Grid-Forming Inverter Development and Engineering Framework (Australia, 2023)

Os países mais avançados não aboliram o baseload: compramno por partes, em novos formatos. É o mesmo serviço, com outro nome. Na prática, o baseload não acabou fragmentou-se.

O paradoxo da procura: quando a rede serve quem não produz

A discussão sobre o baseload não é apenas técnica. À medida que o sistema perde geração firme e ganha variabilidade, a própria natureza da procura se torna determinante. E é precisamente aí que surge o maior paradoxo: quanto mais volátil é a oferta, mais dependente o sistema se está a tornar de consumos que não admitem interrupção. A rede não está apenas a lidar com fontes mais variáveis; está também a alimentar consumidores mais críticos.

Os centros de dados que se instalam na Península Ibérica exigem disponibilidades de 99,9% ou mais, margens de variação de milissegundos e estabilidade de tensão que não tolera flutuações.

Não se trata de questionar a necessidade ou legitimidade dos data centers são peça fundamental da economia digital global e afinal o que finalmente me conseguiu fazer passar 2 anos seguidos no meu país, nos últimos 20. A questão é de sequenciamento e priorização.

Sustentabilidade: virtual?

Segundo o Expresso (9 de Outubro de 2025), o Ministério do Ambiente e Energia confirmou que os promotores de centros de dados já submeteram 26,5GW de pedidos, contra menos de 10 GW de capacidade de ponta. Que critérios usamos para decidir quem acede primeiro a uma rede que ainda está a ser construída?

O sistema que os pretende servir é o mesmo que se propõe abdicar da geração firme e depender de recursos intermitentes e de resposta em tempo real. Em Portugal, só os pedidos de ligação de centros de dados já somam cerca de 26 GW, contra uma capacidade de ponta inferior a 10 GW. É uma diferença que, por si só, explica o risco: nunca tivemos tanta carga crítica num sistema com tão pouca reserva estrutural.

Nunca tivemos tanta procura por energia estável paga a peso de ouro se for preciso, os mercados mandam contra tão pouca capacidade de atender essa procura: falta capacidade em MW, falta rede, faltam recursos humanos qualificados que não seja preciso importar a peso de ouro para construir à escala anunciada.

Arrendamento Energético

E, no entanto, esta dependência e fragilidade são apresentadas como vitória estratégica. Chamam “soberania digital” ao que é essencialmente arrendamento energético: oferecemos eletricidade, território e estabilidade climática a empresas que processam dados, faturam lá fora e deixam cá pouco mais que o ruído dos ventiladores e alguns profissionais agradecidos.

Foram precisos vinte anos a fazer projetos de infraestrutura fora de Portugal de energia, petroquímica, produção, transportes, bref: de economia “real” para poder regressar ao meu país a fazer projetos de CAPEX semelhante. Para assistir e participar no espectáculo de governantes ou ex-governantes apresentarem como “investimento transformador” a construção de condomínios de dados.

Os centros de dados são infraestrutura digital essencial, mas sozinhos não constituem um modelo de reindustrialização. São intensivos em capital e energia mas relativamente limitados em criação de emprego direto o que levanta questões sobre alocação de recursos escassos num país com capacidade de rede limitada. Pagam energia a preço regulado, consomem rede pública e devolvem impostos noutras jurisdições.

Não é que os centros de dados não sejam necessários são. Só que o modo como Portugal os acolhe é sintoma de um modelo de crescimento dependente, intensivo em energia e pobre em soberania. Um modelo que converte a transição energética em mera prestação de serviço elétrico a capitais externos, sem multiplicador industrial interno. E que confunde “instalar” com “criar”.

Estratégia e soberania

E aqui entra a questão estratégica: como alocamos os recursos? Temos capacidade de rede, terreno e investimento limitados. Podemos usálos para instalar 26 GW de pedidos de centro de dados que consomem energia, empregam dezenas de técnicos e devolvem impostos noutras jurisdições. Ou podemos usálos para criar capacidade industrial própria produção de equipamento eólico offshore, refino e tratamento de combustíveis, outras indústrias eletrointensivas com valor acrescentado nacional. Que geram emprego qualificado e multiplicam atividade económica, criam ecossistemas de empresas para atender aos projetos.

O desenvolvimento do sistema elétrico e da indústria em geral, mas isso são outros 500 parece totalmente dependente dos humores desta ou daquela moda, deste ou daquele investidor mais afoito. Os centros de dados são infraestrutura necessária, mas transformálos no eixo central da estratégia energética é um erro de alocação brutal. Portugal está a oferecer o recurso mais escasso eletricidade firme, barata e verde a quem menos multiplica esse valor internamente. É o equivalente a exportar crude em vez de refiná-lo: ficamos com a extração, outros ficam com a margem.

Conclusão

Galamba tem razão numa coisa: o sistema está a transformarse. Mas não é uma transformação de natureza; é uma transferência de funções da turbina para o transistor, da inércia física para o controlo digital. E cada transferência traz risco, atraso e custo.

Quem já desenhou, construiu e testou uma central sabe que há um limite para o que se simula. Os modelos preveem quase tudo, até o momento em que a corrente deixa de circular. A partir daí, não há mercado que salve o sistema só engenharia.

Mas há também outra forma de baseload que falta ao país: o baseload produtivo, a base industrial e estratégica que sustenta a soberania. Porque o que hoje chamamos “crescimento digital” é, na prática, uma concessão energética a terceiros. O país fornece eletricidade, fibra, solo, engenheiros e gestores como este que vos escreve; outros extraem o valor e levam-no de volta para Delaware, Dublin ou Luxemburgo.

O baseload não é nostalgia. É o ponto de partida de qualquer civilização elétrica e económica. Podemos reinventá-lo, fragmentá-lo, contratá-lo em leilões de “serviços de estabilidade”. Mas nunca deixaremos de precisar dele, nem da coragem política para o reconstruir. A transição energética deveria servir um projeto nacional de reindustrialização, não de arrendamento de megawatts. E para isso precisamos de um Estado que planeie, que regule, e que não confunda deixar o mercado funcionar com abdicar de definir o interesse coletivo.

Porque quando o ecrã se apaga, a discussão volta sempre à mesma pergunta: quem segura a frequência e quem controla a infraestrutura?

João Peixoto, engenheiro mecânico com 20 anos de experiência no projeto, construção e comissionamento de infraestruturas de energia e missão crítica. Atualmente Gestor de Projeto MEP em dois centros de dados de Lisboa.

Links

  1. Advancing Past “Baseload” to a Flexible Grid, The Brattle Group (2022)
  2. ENTSO-E – System Operation Guidelines (LFCR, 2019)
  3. February 2021 Texas Power Crisis, Texas Tribune (2021)
  4. WindEurope – ENTSO-E Report on the Iberian Blackout (2025)
  5. National Grid ESO – First Phase Stability Pathfinders Delivered (UK, 2023)
  6. ESS News – Grid-Forming Inverter Development and Engineering Framework (Australia, 2023)