Era uma vez Lisboa

Publicado por João em 20-10-25 22:27

Em setembro, após a Nota Informativa sobre Abertura de Investigação pelo GPIAAF sobre o descarrilamento do Elevador da Glória de 3-Set-25, analisei as falhas técnicas reportadas e mapeei o vazio institucional que elas já indicavam. O relatório preliminar agora publicado confirma: não foi um cabo que falhou, foi o sistema de gestão como um todo.

O relatório confirma Lisboa estava e está descalça

O relatório preliminar do GPIAAF sobre o acidente do Elevador da Glória não revelou nada que não se tivesse percebido e dito logo após o acidente. O que ele faz e bem é confirmar por escrito o que já sabíamos:

O acidente do Elevador da Glória não foi uma fatalidade mecânica, foi o produto direto de desnorte institucional, ausência de engenharia e descaso político.

1. Cultura técnica perdida

O GPIAAF descreve uma manutenção empírica, executada por mão-de-obra sem estrutura de engenharia.
O travão de emergência não era ensaiado há décadas.
O cabo que cedeu não era do tipo previsto e não foi verificado pela equipa de engenharia da Carris — que deixou de o fazer desde 2020.

Tudo isto é a definição prática de um sistema abandonado à sorte.

2. Falhas estruturais e ausência de redundância

A investigação confirma:

  • Travões subdimensionados para o peso atual das cabines.
  • Ausência de travão independente funcional.
  • Ponto de fixação sem acesso nem inspeção possível. São falhas conhecidas ou pelo menos expectáveis persistentes, que ninguém corrigiu — nem a Carris, nem o município, nem os reguladores.

3. O vazio institucional

Durante anos, o IMT e o Governo entenderam que os elevadores de Lisboa não estavam sob o regime dos funiculares, e portanto não havia fiscalização externa.
Esse “entendimento partilhado” fez com que o operador se auto-certificasse.

É a tradução burocrática de uma ideia perigosa: se não há norma, não há problema. E passa a outro que não ao mesmo.

4. O retrato do país

A recomendação final do relatório é sóbria, mas inequívoca:

*Reativar os elevadores apenas após criação de enquadramento normativo e técnico adequado.*

Traduzindo: não há enquadramento técnico.

E não há porque o deixaram morrer em nome do “progresso” medido em ROIs, KPIs e toneladas de descaso.

5. Um mês e meio depois

Em Setembro escrevi que o caso da Glória era o retrato de um país onde “todos supervisionam, mas ninguém responde”. Ninguém assume responsabilidades. Apenas se existe. Nada se inscreve, como diria José Gil (ainda O Medo de Existir). O relatório confirma.

E confirma, também, que a engenharia foi substituída pela burocracia, por “processos” geridos por gente muito fina, muito importante e muito competente, sempre com tempo para tudo, menos para fazer o seu trabalho. Processos com que vão desmaterializando a economia, a manutenção e o puro e simples juízo. Em Lisboa e no país.

Um país que mantém património mecânico centenário sem o compreender, nem se dar ao trabalho de garantir que é seguro, antes de o exibir até à exaustão como atração turística.

E agora, Ministério Público?